No divã

Bom dia, Chérie.

00:47

(Foram as primeiras palavras de S., minha psicóloga, assim que me identifiquei pelo interfone.)

Acordei cedo para me dar o céu da manhã enquanto trabalho no notebook. Abri as janelas, liguei a cafeteira, lavei o rosto... Tenho evitado telas logo que acordo, no máximo uso para desligar o despertador e colocar uma boa música pra sentar comigo durante o café da manhã.

As manhãs de quarta-feira terminam em terapia, é como recomeçar a semana sempre que ela chega na metade. E todo começo sucede um final, que precede um novo recomeço. É tão cíclico quanto o meu útero.

"Que semana gostosa! Esse solzinho..." -Eu disse enquanto ela abria o portão para me receber. Senti sua escuta atenta desde ali, e não me intimidei: temos intimidade pra isso e essa é uma das belezas do processo.

Enquanto me sentava no divã, S. me ofereceu um café e aceitei. Segunda hora de acordarHoje a sessão se deu entre raízes, galhos e pétalas. Mas, principalmente, em brotos.

Tenho me sentido mais mulher do que nunca: desde a conexão com meus próprios hormônios até a me permitir negações, tenho me divertido ao experimentar essa mulheridade que brota no meu peito. Mas as flores também são dolorosas, e eu nem estou falando dos possíveis espinhos. Pra semente brotar precisa romper, dilacerar-se: e isso dói em qualquer um. Assim como para desabrochar é preciso o rompimento do broto, e isso tudo é quase violento e muito necessário. Mas ninguém disse que seria fácil, né?

Lembrei de sexta-feira, do feriado. Passei o dia em casa vivenciando minha própria companhia. Havia decidido ser produtiva (no sentido capitalístico), mas quando o dia livre chegou precisei voltar-me a mim. Bebi meu café ouvindo Tim Maia sentido o groove como se meu coração batesse em sintonia, mergulhei na ideia de ter rotinas matinais de autocuidado. Incensei a casa toda, lavei o chão com aroma de lavanda. Organizei meu armário improvisado, planejei prateleiras para por plantas e meus livros pelo quarto mês que vem. Me senti leve e até risonha... Até achei graça de uma faxina me fazer tão bem.

Até que me dei uma pausa, sentei no banco de madeira que temos na varandinha e fui acometida de uma tristeza tão profunda que chorei de desamparo. Sempre tive medo de que o choro me entregasse, frágil e indefesa, à melancolia. Mas percebi que não: me lavei por dentro também. Senti o Sol daquela tarde tão bonita me aquecer o colo e os ombros. E então o rosto. Levantei, deixei a água fria  da pia do banheiro tocar a pele e terminei a faxina. 

Antes de seguir com o dia de folga, pensei que o medo de sentir só faz sentido quando definimos emoções enquanto boas e ruins, bonitas e feias. Lembrei de uma aula, semestre passado, sobre psico educação: existem sentimentos mais difíceis de lidarmos, mas nunca ruins. Tudo o que sentimos é importante. Essa professora compartilhava conosco sua rotina trabalhando com psicologia hospitalar e nos contou a metáfora que usava com os pacientes: "Somos como barquinhos e as emoções são o mar. Ás vezes as ondas são mais fortes, às vezes a água está mais calma. Mas o barquinho se mantém, se movimenta com as ondas, sobe, desce... Mas não é totalmente levado por elas. São elas que passam por ele."

Percebi que não me afoguei. Bem pelo contrário, descobri que sei nadar e só desaguei um bocadinho. A tristeza, como estudamos, é importante para fazermos contato com nós mesmos e compreendermos nossas urgências, importâncias. E quando nos ensinamos sobre nós mesmos. É quando nos conectamos com o que há de mais nosso em nós. É sobre o que realmente precisamos.

Lembrei, então, do que ouvi em um minicurso sobre ludoterapia, num evento de Psicologia Humanista: no campo de sentir tudo é válido. Não existe sentimento errado. A gente se culpa por algo que nos torna tão terrivelmente -ou melhor: intensamente- humanos. No final das contas tá tudo bem não estar tudo bem, faz parte. Claro, levando em consideração uma melancolia "saudável", hoje não vim conversar sobre depressão, viu?

Projeto A Florigrafia, por Natália Viana e Rafaela Melo, do qual já conversamos aqui
Será que a flor sente medo de romper a semente e não dar conta de crescer até perpassar toda a camada de terra? Ou de romper o broto e não se reconhecer mais enquanto raízes, caule e folhas?

Só sei que a primavera está ardendo dentro de mim. Não é a toa que escrevi esse daqui faz quase um ano. Agora minhas veias estão florescendo intensamente.

Saí pelo portão do prédio do consultório com o peito tão aberto em flores que me presenteei com uma caneca colorida que namorei durante meses na prateleira de um mercado. Disse um bom dia cortês, no meio da calçada, para uma senhora que nunca vi na vida. Vibrei com as cores diferentes das portas e janelas de algumas construções desse bairro boêmio onde moro. Conversei com gato da minha vizinha e sorri para o cachorro dos meus colegas de apartamento. E lembrei diversas vezes do final do encontro dessa quarta:

"Escreva, são coisas muito bonitas para perderes em bobagens. O corte que estou fazendo não é por tu não ter mais o que dizer e sim por querer deixar isso contigo." -S., fugindo do costume, interrompeu a sessão de maneira um pouco mais abrupta.

Estou escrevendo, ma chérie. Um pouco sem rumo, um pouco sem jeito. Mas estou escrevendo e sem grandes cerimônias: sentei e escrevi antes que as palavras me sufocassem. E, como disse Cecília: "Sei que canto. E a canção é tudo."

Merci beaucoup.
Até semana que vem.

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Talvez esse seja o nascimento de um novo quadro por aqui que pensei em chamar de "No divã".
Ás vezes sinto vontade de elaborar através da escrita algumas das sessões,
então pensei: Por quê não? E aqui estou. Tenho me redescoberto pelo
viés da Psicanálise, e sou estudante do terceiro semestre
de Psicologia. Desejo que seja um lugar 
confortável para dialogarmos.

Como não conversei a respeito do texto com a S., preferi manter em sigilo seu nome.


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